
Amo-te
— diríamos nós,
no exacto instante de lhe cravar o punhal
no meio do peito.
E depois
desejaríamos que se fizesse luz,
uma grande luz branca,
o sol,
para vermos o sangue correr e,
possivelmente,
afogar a nossa boca no sangue amado.
Para conhecermos tudo,
até ao fundo
e até ao fim.
Porque o amor e o conhecimento
são as artes do crime.
Tenho um ramo de flores para ti,
diz o amante:
são flores, venenosas.
Mas toda a gente sabe isto:
ninguém deseja nada do amor.
É o tema eleito das palavras.
Eis a razão por que o outro
está escondido na praça,
ao meio da qual existe um largo fontanário,
com a sua rodada taça de pedra,
de onde transborda uma água
silenciosa e dormente.
A brasa do cigarro
marca uma curva no ar
e cai na água.
Ele está ali, bem perto.
Mas depois
tudo será mais difícil.
Porque
será a perseguição declarada,
sem o pretexto de pedir lume.
Também não haverá já
a indicação do lume, no meio da noite
— o sinal de que ali está a pessoa,
viva,
fumando,
respirando,
tremendo.
Porque foges?,
e enquanto,
no mais secreto da sua aflição,
ele o pergunta,
corre em direcção ao fontanário
e quase esbarra com o outro.
Sentem-se,
mútuos,
únicos,
arfam no escuro da praça,
a treva treme levemente
na água adormecida.
Mas ele diz
(e quem sabe se isso é absurdo?)
diz: lume,
e o outro escapa-se,
e põe-se a correr em volta
do fontanário.
Os sapatos
chapinham na água e a ele,
que já começou a persegui-lo,
correndo também em torno da taça de pedra,
chapinhando do mesmo modo
na água vazada,
ocorre-lhe um insólito pensamento:
caminhamos sobre as águas.
Então abranda um pouco a corrida,
inclina o corpo para a direita,
e mete a mão na água da taça.
É um ruído novo,
virgem,
e o contacto da sua carne com a água
faz nascer em si uma confusa alegria,
o sentido de uma festa natural,
o desejo de morrer ali,
agora,
triunfalmente.
E o outro?
— o outro foge,
e como não abrandou o passo,
nem mergulhou a mão na água,
nem pensou (supõe-se) na alegria
de uma festa mortal,
o outro adiantou-se,
e já se encontra no lado oposto
do fontanário.
E é ágil,
essa criatura sem nome,
o ser que se ama,
aquele que se persegue
e a quem se deseja conhecer,
para suplicar lume,
ou voz,
ou vida,
ou sangue,
ou sabe--se lá o quê.
Corre depressa demais.
E andando em círculo,
chapinhando sempre na água,
e às vezes pensando ainda:
caminhamos sobre as águas,
ele sente,
súbito,
que o outro avançou bastante.
Treme de medo,
porque o outro avançou tanto
que já ultrapassou o ponto onde,
com o ponto onde ele se encontra,
formava os extremos do diâmetro
do círculo.
E isto significa:
o outro é agora o perseguidor.
E, como avança cada vez mais,
torna-se cada vez mais no perseguidor,
e ele no perseguido.
Talvez o outro pense:
porque foges?,
e lhe queira pedir a sua voz,
o seu amor,
o seu sangue.
É quando sente perto da nuca
a respiração do outro.
Tem tempo apenas para desviar-se,
correr para a esquerda,
atravessar a praça
e meter por uma ruela negra.
Mas, parando um instante,
ouve os passos do outro na sua direcção.
E então foge através do bairro,
do tempo,
de pedra em pedra,
com o seu pavor de animal perseguido,
ouvindo o bater implacável
dos pés do outro.
Haveria palavras para ouvir,
a antiquíssima súplica do perseguidor:
porque foges?
E que poderia ele dizer?:
tenho medo?
As palavras nunca mais acabariam,
enredar-se-iam umas nas outras,
seria um jogo mortal.
Não mais haveria
a suspensão do irremediável,
esta espécie de silêncio na beira do crime,
no qual sabemos,
com dor,
que ainda estamos vivos.
Ele foge.
Quem sabe
se a noite terá fim?
Herberto Helder
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